O Museu da Abolição é um museu público federal, vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), que tem por missão preservar, pesquisar, divulgar, valorizar e difundir a memória, os valores históricos, artísticos e culturais, o patrimônio material e imaterial dos afrodescendentes, por meio de estímulo à reflexão e ao pensamento crítico, sobretudo quanto ao tema abolição, contribuindo para o fortalecimento da identidade e cidadania do povo brasileiro. Esta responsabilidade, aliada ao papel social dos museus de estar a serviço da sociedade, conduz o MAB a refletir também sobre temas transversais, referentes aos direitos humanos, tais como: acesso ao trabalho, políticas públicas de inclusão, intolerância religiosa, racismo, preconceito, exclusão, gênero e etc.
Por este motivo, o Museu desenvolve, desde de 2016, o Projeto Selos, que tem por objetivo associar a imagem institucional a temas diversos, oferecendo ao público oportunidade para refletir sobre questões relevantes e urgentes no mundo contemporâneo e potencializar seus esforços na diminuição das desigualdades sociais.
O projeto visa à confecção de um selo anual, ao qual corresponderá um tema específico, que será desenvolvido em todas as atividades do calendário do Museu, a fim de estabelecer conexões entre temáticas atuais e suas atividades finalísticas. O propósito do projeto é, além de relacionar temas selecionados e ações e atividades do museu, ampliar redes de articulação e cooperação entre instituições públicas e privadas, espaços de ensino, movimentos sociais, religiosos e culturais.
Em resumo: O Projeto Selos foi criado no intuito de aproximar a instituição dos seus diferentes públicos, para ampliar o debate e reflexão sobre temas contemporâneos, escolhidos anualmente, além de promover e apoiar eventos e ações das instituições parceiras que abordem o tema proposto. Neste sentido, todas as atividades, ações, eventos, debates, etc., desenvolvidos no Museu ao longo do ano deverão ter este tema como foco principal.
Selo 2022: Políticas e ações afirmativas
O processo de escravização no Brasil criou feridas profundas que ainda hoje não estão cicatrizadas e causam desigualdades econômicas e sociais que atingem fortemente a população negra, mesmo com ações organizadas de luta e resistência no período pré-abolição e passados 134 anos da assinatura da Lei Áurea (1888). Essa herança deformadora caracteriza-se pela desvantagem social oriunda do mito da inferioridade e desumanização do negro escravizado, e por um suposto despreparo para o ingresso no sistema capitalista de produção, criando um segmento populacional que viria a ser conhecido como aquele “à margem da sociedade”.
A trajetória do povo negro brasileiro foi construída de enfrentamentos históricos, tendo como mote mais relevante a luta pelo reconhecimento de sua dignidade humana e de seus direitos enquanto cidadão. As inúmeras revoltas populares, fugas e a constituição dos quilombos são grandes exemplos de organização coletiva da população negra frente à escravização e um dos maiores símbolos de resistência e da luta pela sua emancipação. Assim, pode-se considerar que desde a escravidão já existia um movimento negro buscando forçar o governo a reconhecer as diferenças que eles provocavam em termos de oportunidade e cidadania, uma busca por equidade. Iniciados de forma precária e clandestina, com o passar dos anos, esses movimentos foram crescendo, se fortalecendo e se diversificando, tornando-se um dos grandes responsáveis por diversas conquistas do povo negro.
Em paralelo, no mesmo período, houve o crescimento do Movimento Liberal Abolicionista que propunha arrecadações para compra da alforria de escravizados, escrevia e mandava abaixo-assinados ao governo exigindo leis abolicionistas ou clamando por melhorias em projetos que já tramitavam na Câmara. Esse movimento contou com uma expressiva mobilização de pessoas negras, tais como Luiz Gama, José do Patrocínio, Maria Firmina Reis, André Rebouças, entre outros que se articulavam a partir da imprensa, da literatura, do direito, da política e das revoltas populares.
O resultado foi a criação de leis que serviram de prelúdio para a abolição. A primeira foi a Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei Eusébio de Queirós, que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Brasil Imperial. A Lei do Império nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, alcunhada popularmente como “Lei do Ventre Livre” é considerada a primeira instituição jurídica em direção à abolição da escravidão no Brasil. A Lei Saraiva-Cotegipe, conhecida como a Lei dos Sexagenários, foi instituída prevendo liberdade aos sujeitos escravizados que tivessem mais de sessenta anos de idade e estabelecendo normas para libertação gradual dos cativos (mediante indenização aos seus senhores). E, por fim, a Lei Áurea, promulgada em 1888 a qual extinguiu de vez o trabalho escravo no Brasil, libertando assim mais de 700 mil escravos ainda existentes no país.
A privação de direitos à população liberta no pós abolição da escravatura plantou as raízes de um racismo que se tornaria estrutural na sociedade brasileira. A liberdade do povo negro foi reconhecida pelo Estado, mas a igualdade e as oportunidades de desenvolvimento econômico e social foram e continuam sendo conquistas frutos de lutas diárias que perduram já há mais de um século. Em paralelo à negligência do Estado, o preconceito e a discriminação estabelecem diferentes padrões de acesso a bens e oportunidades e criam desigualdades entre os grupos raciais, com desvantagem para o povo negro.
A partir do século XX, diferentes expressões do Movimento Negro engajaram-se na luta pela cidadania e contra as desigualdades raciais: a imprensa negra, a partir de 1903, a Frente Negra Brasileira, fundada na década de 1930, com caráter conservador; o Teatro Experimental do Negro, criado na década de 1940 como uma companhia de teatro para atores negros, mas que desenvolveu também outras atividades políticas e culturais; o Movimento Negro Unificado, que surgiu na década de 1970 e que lutava para transformar a sociedade brasileira; o movimento quilombola; e o movimento de mulheres negras, que emergiu na década de 1980, e que luta simultaneamente contra o racismo e o sexismo.
No processo pró abolição, que culminou com a criação de leis que visavam desde a liberdade da população negra até sua emancipação, não houve de fato uma preocupação com a qualidade de vida da população negra, antes escravizada, agora pseudo liberta. A promoção da igualdade étnico-racial e do combate ao racismo de âmbito estrutural é recente e ganhou visibilidade principalmente após a “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, realizada em Brasília em novembro de 1995 e a “III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas,” organizada no âmbito das Nações Unidas, realizada em 2001 em Durban, na África do Sul, quando o Brasil se comprometeu com o tema e com a criação de uma política nacional de promoção da igualdade racial, fazendo avançar as políticas e ações afirmativas para superação do racismo e das desigualdades, ao garantir os direitos da população negra e dos povos e comunidades tradicionais. O grande marco deste movimento foi a criação do Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei nº 11.288/2010.
Dessa forma, a ação afirmativa, enquanto mecanismo de discriminação positiva, busca combater as práticas racistas, visando à inserção da população negra nesses setores e consequentemente, a realocação das condições e oportunidades sociais. Ou seja: ação afirmativa refere-se a um conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirmativas incentivam as organizações a agir positivamente a fim de favorecer pessoas de segmentos sociais discriminados a terem oportunidade de ascender a postos de comando. (OLIVEN, 2007, p. 30)
O conceito de ações afirmativas envolve um conjunto de fatores relacionados com a perspectiva social, econômica, histórica, política e sobretudo étnica e racial. E, no Brasil, perpassa pela dívida histórica acumulada durante três séculos de trabalho escravo e maus-tratos que a população negra sofreu e cujas marcas seguem condicionando a sua qualidade de vida e oportunidades de desenvolvimento social e humano.
Uma das formas de garantir equidade no âmbito das oportunidades de ascensão social é através da educação e do ingresso no mercado formal de trabalho, da garantia do acesso da população negra ao maior grau de escolaridade na esfera do ensino formal. Tais preocupações foram consolidadas em leis que estabelecem políticas públicas específicas, tais como, a Lei nº 10.639/2003, que obriga as escolas a tratar da história e cultura africana e afrobrasileira, a Lei nº 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas, que visa a implantação de um sistema nacional de cotas para negros, indígenas e estudantes da rede pública para ingresso em instituições federais de ensino superior e a Lei nº 12.990/2014, que tem por objetivo a instituição de cotas para ingresso da população negra no serviço público.
O Museu da Abolição, ao escolher o tema do Projeto Selo 2022 “Políticas e ações afirmativas”, leva em conta a revisão da Lei de Cotas proposta na norma legal prevista para este ano, objetivando debater a importância de ações conjuntas e efetivas assentadas em oportunidades equivalentes para todos e em diversos setores, no acesso aos bens, aos serviços e à renda por meio de um projeto antirracistaque tenha conteúdo político e luta pelos direitos civis.
O MAB acredita que políticas e ações afirmativas não são apenas uma necessidade dos negros brasileiros, mas uma obrigação social e moral da nação, que devem ser efetivadas a título de reparação, sustentadas no fracasso da abolição, que não promoveu com a Lei Áurea nenhuma medida efetiva de integração do ex-escravizado aos sistemas de produção, permitindo que aquele se tornasse um cidadão de fato, vivendo em condições de igualdade com os demais brasileiros. Ao contrário, o próprio Estado brasileiro empreendeu, a partir de teorias raciais do século XIX, estratégias de embranquecimento da população que nunca obtiveram êxito, de modo que a população negra sempre foi numericamente superior.
A relação existente entre a herança da abolição e a condição da população negra no país, hoje, raramente é considerada. Assim, as ações de reparação reivindicadas pelos movimentos negros junto ao Estado Brasileiro são legítimas e devem ser legalizadas e tornadas efetivas, a fim de que possamos caminhar em direção a uma nova ordem social. Por essa razão, o Museu da Abolição apresenta como tema do Selo MAB 2022 a reflexão coletiva, o debate e a confraternização em torno do tema “Políticas e ações afirmativas”.
Busto de André Rebouças
A proposta do selo do Museu da Abolição, além de criar uma agenda de debates sobre temas importantes para a população negra, também visa promover a instituição e disseminar seu acervo, a partir da escolha de uma peça para compor a identidade visual do selo. Sendo o tema de 2022 “Políticas e ações afirmativas”, foi escolhido o busto de André Rebouças, procedente da “Zani” Fundição artística e metalúrgica LTDA e cópia do original, de autoria de Rodolfo Bernadelli pertencente ao Museu Histórico Nacional, que integra o acervo desde a inauguração do MAB, em 1983.
André Rebouças foi um intelectual negro que viveu no seio de uma elite racista de cujo discurso ele próprio foi vítima. Sua história de vida é um espelho da tensão entre ser negro e torna-se negro, ou seja, do embate entre se reconhecer e ser reconhecido numa sociedade que desprezava a sua cor de pele e sua origem étnica. Precisou enfrentar muitos percalços para ser atuante e militante na causa abolicionista e mais ainda defensor de um projeto político integrador e reformista, pautado na valorização e dignificação dos corpos negros.
Pode ser considerado um precursor nas lutas por políticas afirmativas, uma vez que ele foi um dos poucos preocupados com às questões sociais dos negros libertos no pós abolição, propondo uma reforma agrária que beneficiasse os ex-escravizados. Sua atuação militante na campanha abolicionista ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, ao lado de nomes como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, dentre outros.
Para o Museu da Abolição, homenagear André Rebouças é destacar um personagem negro como atuante no processo histórico brasileiro, ao mesmo tempo que desloca o protagonismo historicamente atribuído à Princesa Isabel e aos abolicionistas brancos, nesse processo que pode ter sido o primeiro grande movimento social do país. Essa referência remete ainda a tantos outros negros e negras que, no processo de oficialização da memória, tiveram sua atuação diminuída ou mesmo apagada diante dos feitos dos “grandes heróis” brancos.
André Pinto de Rebouças, filho de Antônio Pereira Rebouças, um negro autodidata que obteve o direito de advogar e assim galgou ascensão social na Corte do Império, oportunizando aos seus filhos educação e, da mesma forma, inserção naquela Corte. André bacharelou-se em Ciências Físicas e Matemática em 1859 e obteve o grau de engenheiro militar no ano seguinte.
Trazer como tema do Projeto Selo 2022 “Políticas e ações afirmativas”, ao lado do busto de André Rebouças é fazer jus aos que lutaram, por meio da legislação e da atuação política, na tentativa de promover liberdade de fato e igualdade social para a população negra brasileira.